sábado, 31 de janeiro de 2009

Razão e Religião

Razão e religião

Miguel Reale Júnior

No ano que se inicia, comemora-se o centenário da morte do cientista e médico Cesare Lombroso, fundador da Antropologia Criminal. Lombroso foi, ao lado de Garófalo e Ferri, um dos epígonos da Escola Penal Positiva italiana, cujas ideias foram fruto do desenvolvimento das ciências naturais e da confiança nos métodos empírico-explicativos.

A explicação causal do crime nasce com Lombroso a partir de estudos da morfologia de diversos condenados e internados, observando dados físicos dos quais retira consequências acerca do desenvolvimento mental. Sinais exteriores como queixo prognata, testa curta, orelhas de abano são características correspondentes a tendências delituosas. Dessa maneira, há um criminoso nato cuja origem está no atavismo, na herança da idade selvagem. O delito é fruto inexorável desse homem incorrigível, em razão da não-evolução de aspectos físicos e psíquicos. Assim, Lombroso negava o livre-arbítrio por acreditar na determinação absoluta da prática delituosa por fatores antropológicos.

Além de O Homem Delinquente, escreveu Lombroso A Mulher Delinquente, estudo no qual afirmava, após exame das características da mulher como as físicas, a capacidade craniana, o esqueleto, o peso e estatura, a inteligência e a moralidade, que esta possui fundamentalmente caracteres que a aproximam do selvagem e da criança.

Lombroso, contudo, mais tarde, sob influência de Ferri deu relevo aos aspectos ambientais na produção do fato delituoso, além de concluir, no final da vida, em consequência de sua adesão ao espiritismo, que dentre os criminosos poucos poderiam ser considerados como natos.

Curiosa é a caminhada do cientista, aferrado à análise dos fatos e à comprovação de suas causas, em direção ao espiritismo. Lombroso não foi fulminado pelo milagre da graça ou conduzido por uma revelação entusiasmante de Deus e das verdades escatológicas, mas chegou à religião, como se verá, por força dos fatos dos quais se declara escravo.

Na Itália do último quartel do século 19, deu-se forte influência do espiritismo, mormente no meio científico. Lombroso negou-se diversas vezes a participar de experiências espíritas, que chegou a ridicularizar. Coincidiu sua estada em Nápoles, em março de 1891, com a do professor Chiaia e da médium Eusápia Paladino, de extraordinários poderes. Lombroso concordou em presenciar uma sessão, desde que no seu hotel, à luz do dia, com cuidados contra qualquer fraude.

Na primeira de uma centena de sessões com a médium, impressionou-o o fato de, estando Eusápia presa a uma cadeira, a cortina do quarto se ter desprendido para envolvê-lo.

Poucos meses após a primeira experiência espírita, em julho, Lombroso já manifestava se envergonhar de haver combatido com violência a possibilidade de fenômenos espíritas, pois, apesar de contrário à teoria, atestava que fatos existiam e se orgulhava de deles ser escravo.

Em 1890, afirmara, diante da verificação de levitações, de transporte de objetos e de materializações, que com relação à teoria espírita era um pequeno seixo na praia, a água não o cobria, mas a cada maré sentia estar sendo arrastado um pouco mais para o mar. Experiência impressionante foi a aparição, em 1902, de sua mãe em diversas sessões, uma figura com a mesma estatura e a mesma voz, na maioria das vezes chamando-o de "fiol mio", como era próprio de sua origem veneziana.

Indagado por um jornalista em 1906 sobre os fenômenos espíritas, Lombroso disse que por educação científica fora sempre contrário ao espiritismo, mas ao lado de eminentes observadores, médicos, físicos, químicos, biólogos constatou fatos. Assim, acreditava na evidência, nada mais, sem medo do ridículo ao afirmar fatos dos quais experimentalmente adquirira profunda convicção.

Escreveu, então, em 1909, perto de morrer, o livro Hipnotismo e Mediunidade, em cujo prefácio declara que se situou distante de toda a teoria para que a convicção surgisse espontânea dos fatos solidificados pela consciência emanada do consenso geral dos povos. Fez, então, uma consistente síntese das experiências mediúnicas ao longo do tempo, mostrando a analogia entre o que sucedeu com os povos antigos, com os povos indígenas, com os fenômenos ocorridos na Idade Média ou no Renascimento e com o que sucedeu naqueles dias na presença de ilustres cientistas.

Disse, então, possuir um mosaico de provas resistente às mais severas dúvidas. Dentre tantos fenômenos e experiências que relata, muitos dos quais testemunhou, curiosos são os casos judiciários, como o da revelação por espírito de jovem falecido em navio de ter sido envenenado com ingestão de amêndoas com rícino, fato este depois constatado por perícia.

Escravo dos fatos, Lombroso descobre pela experiência o espiritismo, o que não contraria sua formação científica, causal-explicativa.

Alan Kardec, no Livro dos Espíritos, reconhece o livre-arbítrio, mas admite que não são os caracteres físicos que determinam o comportamento, e sim a natureza do espírito encarnado, que pode ter inclinação para o mal, mas possui o poder de enfrentar com o seu querer a tendência manifestada. Lombroso reconhece, ao fim, a pouca incidência de hipóteses do criminoso nato.

Este escorço histórico, quando dos cem anos da desencarnação de Lombroso, recoloca a angustiosa questão do livre-arbítrio ou do determinismo. A meu sentir, a liberdade não pode ser indiferente. Cabe situar o homem em suas circunstâncias biológicas e sociais, pois age no mundo que o circunda. O homem possui uma liberdade, mais que situada, sitiada, sem deixar de ter, contudo, uma esfera de decisão última pela qual define a realização da vontade e a do seu próprio modo de ser. Sem liberdade perdem sentido a dignidade do homem e a imortalidade do espírito.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade
de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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Lombroso e o Espiritismo
 

O Positivismo penal, em que se fundamenta a Criminologia, teve três fases distintas: a antropológica, com Cesare Lombroso (do qual falaremos em seguida); a sociológica, com Enrico Ferri, criador da Sociologia Criminal através de um livro homônimo lançado em 1880, e a jurídica, com Rafael Garofalo, cuja obra maior foi Criminologia, editada em 1884 e dividida em três partes — o delito, o delinquente e a repressão penal.

 

Miguel Reale Júnior, motivado pelo centenário da desencarnação de Lombroso, ocorrida em Turim a 19 de outubro de 1909, escreveu interessante artigo intitulado Razão e religião, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 3 de janeiro de 2009, abordando alguns estudos lombrosianos, inclusive o livro Hipnotismo e mediunidade, escrito depois que o psiquiatra italiano aceitou a fenomenologia espírita.

No crédito do artigo, consta que seu autor é advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e foi ministro da Justiça, mas não diz se ele é ou não espírita, embora cite expressamente Allan Kardec e O livro dos Espíritos. Além disso, aceita sem hesitação a tese espírita do livre-arbítrio, e termina da seguinte forma: "O homem possui uma liberdade, mais que situada, sitiada, sem deixar de ter, contudo, uma esfera de decisão última pela qual define a realização da vontade e a do seu próprio modo de ser. Sem liberdade perdem sentido a dignidade do homem e a imortalidade do espírito".

O trabalho do professor Reale Júnior está repercutindo muito bem, com rasgados elogios de estudiosos da problemática humana, sobretudo por causa do renome nacional e internacional do articulista, profundo conhecedor da ciência penal e que agora aceita publicamente o fator espiritual na gênese do comportamento criminoso. Realmente, como ensinou o saudoso Deolindo Amorim, na visão espírita o homem não é absolutamente livre, porque diversos fatores restringem a manifestação da sua vontade, mas ele também não é mero joguete do determinismo, seja esse determinismo glandular, psicológico ou imposto pelas contingências sociais. Sabe o que está fazendo e deve responder pela sua conduta, posto que, no dizer de Fernando Ortiz, para o Espiritismo "a defesa social humana é um fundamento imediato da penalidade entre os homens; seu fundamento mediato e supremo é a tutela, a correção do delinquente, seu melhoramento moral, seu progresso".

Eliseu Mota Júnior

*Promotor de Justiça aposentado e professor universitário

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